O que pensa o policial civil que morou sete dias no Complexo do Alemão sem se identificar para gravar um reality show
MAURÍCIO RIBEIRO MEIRELES
Rio de Janeiro. Um policial infiltrado no Complexo do Alemão. Não para investigar traficantes, mas para colher histórias de vida. É essa a ideia por trás de Papo de Polícia, reality show que vai ao ar na semana do dia 7 a 13 de fevereiro, às 21h15, no canal pago Multishow. Seu protagonista é Beto Chaves, inspetor da Polícia Civil do Rio de Janeiro há sete anos. Ele, que participou da operação policial que expulsou os traficantes da facção de dominava o conjunto de favelas em novembro, volta ao lugar com outras armas: seu ouvido e sua sensibilidade. O programa é um documento dos medos e esperanças dos moradores do Complexo vistos sob o ponto de vista original de quem só entrava lá em combate. Beto recebeu ÉPOCA na sede do AfroReggae, no Centro do Rio, para esta entrevista exclusiva.
ÉPOCA – Que objetivo você espera alcançar com o programa?
Beto Chaves – Dar visibilidade para histórias e pessoas que talvez nunca fossem conhecidas. O fato de eu ser policial torna tudo mais louco. O Papo de Polícia foi gravado depois que eu saí da operação de novembro. Tinha sido muito cansativo. Fiquei três dias sem trocar de roupa, sete dias dormindo três horas por noite. Decidimos que eu precisava morar lá. Fiquei o mesmo tempo que durou a operação. Aqueles sete dias foram como sete meses.
ÉPOCA – O programa é resultado de um projeto que você desenvolve com jovens. Que projeto é esse e como ele funciona?
Beto Chaves – É o Papo de Responsa. Somos dez duplas de policiais e integrantes do AfroReggae que viveram o crime de forma direta ou indireta. É um ambiente de pura contradição. Se um cara desses, em outro contexto, me descobre como policial, ele me mata. E eu faria o mesmo se tivesse a oportunidade de me defender. Vamos a escolas, universidades, igrejas e vários lugares falar das nossas experiências. Falar de segurança pública é uma desculpa para falar da própria vida. São dois “inimigos” unidos, que olham na mesma direção e sonham os mesmo sonhos. Se eles são capazes de dar as mãos, tudo é possível. Quando crescemos, barreiras visíveis e invisíveis nos impedem de dar as mãos. Como policial, eu preciso vencer a minha própria batalha se quiser vencer as batalhas na fora. A minha batalha é conta meus preconceitos, minhas verdades absolutas. Sem vencer essa luta, eu não vou conseguir ganhar a “guerra” que está lá fora.
ÉPOCA – Esse é um pensamento corrente na polícia ou você é exceção?
Beto Chaves – Não me acho exceção. A polícia civil do Rio é a instituição policial mais antiga do país, com 202 anos. Quando Dom João VI veio para cá fugido de Napoleão, ele tinha medo de uma invasão francesa e dos próprios moradores da colônia. Ele criou o embrião da polícia civil. Não para proteger a sociedade brasileira, mas para se proteger. Na história recente, a mesma coisa aconteceu na ditadura militar. Éramos usados como instrumento de repressão do Estado. A polícia vira “cidadã” com a Constituição de 1988. Faz só 22 anos. Antes disso, era pé na porta e tortura. Nossa democracia é nova. A mudança leva um tempo.
ÉPOCA – A situação está melhorando?
Beto Chaves – Está. A última operação na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão, em novembro, foi um marco na história da polícia. Um dos motivos é a mudança do olhar da sociedade para nós. Quer um exemplo? Quando chegamos na Vila Cruzeiro, a população do morro e do asfalto nos aplaudiu. Lembro de uma senhora que vibrava como se fôssemos grandes heróis. Me dá até um arrepio lembrar. Nossa responsabilidade é maior quando contamos com a confiança dessas pessoas.
ÉPOCA – A polícia sempre invadiu favelas e nunca tinha sido aplaudida. O que mudou?
Beto Chaves - O principal foi a presença das Forças Armadas. Outro motivo foi a imprensa perceber que o negócio era sério, que a operação podia mudar rumos. Quando deu crédito à operação, ela influenciou a opinião pública. E, quando a população apoia, a história acontece de uma forma diferente. Quando vejo aquela senhora contando comigo, minha responsabilidade quintuplica. Antes quem contava comigo? Ninguém. Ninguém confiava na polícia. Só a minha mãe e isso porque ela tem um filho policial.
ÉPOCA – Se o que você diz é verdade, os aplausos das pessoas deveriam ter impedido que alguns policiais cometessem abusos contra moradores do Complexo...
Beto Chaves – Eu queria que a instituição policial fosse a única corrupta e violenta do nosso país. Para a polícia ficar ruim, ela precisa melhorar muito. Porque a nossa sociedade precisa melhorar muito também. Ela está preparada para uma boa polícia? A sociedade é umbilical, egoísta. Para os outros, o rigor da lei. Para si mesmo, o jeitinho. A polícia errou? Errou, mas é a humanidade que temos em todas as instituições. A sociedade precisa continuar a movimentar a polícia como fez ano passado para evitarmos esse tipo de abuso. A polícia é um gigante bobo e forte, mas é manipulável.
ÉPOCA – Dizer que a culpa da polícia corrupta é da sociedade não é a mesma desculpa que se usa para explicar por que jovens entram no tráfico?
Beto Chaves – Eu não vim de “Poliçópolis”. Não tem uma cidade em Marte de onde saíram todos os policiais. O policial que sou e levo para o trabalho tem os valores que eu trouxe de casa. Naquela cena da TV, dos traficantes fugindo em fila indiana, quantas pessoas não se questionaram: “Cadê o helicóptero que não matou todos?” Ouvi muito essa pergunta. Se tivéssemos feito aquilo teríamos jogado tudo fora. A ONU ia cair em cima da gente. Mas a sociedade clamava por isso. A mesma sociedade que teria nos chamado de assassinos se tivéssemos matado todos.
ÉPOCA – Você diz que não veio de outro planeta. Mas a polícia não tem uma cultura própria?
Beto Chaves – Sim, claro. O jornalismo também não tem? Você não tem os seus jargões? Também temos uma cultura forte. Talvez um pouco pior que as outras. Temos um corporativismo gigantesco, por exemplo. A polícia também está acostuma a dizer o que deve ser feito mesmo quando não sabe o que fazer. Quer um exemplo? Um menino de 12 anos com uma pistola chinesa nas mãos. Isso é responsabilidade da polícia? Olha o que falhou antes. Falhou educação, saúde, trabalho, saneamento, habitação, família, transporte. Aí chamam a polícia. O menino levanta a arma pra mim e atira. Faço o que com ele? Atiro de volta. No caso de graças a deus prendermos esse garoto, o que o sistema penitenciário faz com ele? Vai reeducá-lo? Vai ressocializá-lo? Me diz: sou eu que tenho os meios para lidar com esse menino de arma na mão?
ÉPOCA – Que tipo de lembrança você guarda das operações?
Beto Chaves – Em uma das minhas primeiras operações, morreram três meninos. Eles tinham atirado na gente com seus fuzis. Alguns fugiram, mas aqueles morreram. Vi no rosto de alguns policiais um certo orgulho. Não por ter tirado a vida de três crianças — o que é curioso, já que muita gente imagina que o policial sente prazer com isso. Era um orgulho que vinha dessa cultura de dever cumprido: menos três bandidos, menos três armas na guerra que vivemos. No rosto de outros, havia alguma indiferença. Não por ter deixado de amar, de sentir carinho. Era uma indiferença imposta pela rotina. Quando olhei para aqueles três meninos, vi muitos meninos que tinha visto no passado. Vi uma mãe negra chorando por eles, talvez filhos que eles tenham tido precocemente. Vi uma avó triste. Mas minha cultura, imposta pela sociedade, me diz o quê? Dever cumprido. Quem ganha com essa guerra? Eu não sou. Vários policiais já morreram. Meninos ligados ao crime morreram. Inocentes morreram. Que ganha com essa guerra? Não é a polícia, não são esses garotos. A sociedade, que viveu aterrorizada até há pouco tempo, com certeza não é.
ÉPOCA – Como você é visto na corporação?
Beto Chaves – Sou tido como “operacional”, então tenho respeito dos meus pares para além do trabalho que faço no Papo de Responsa. Mais isso agora. No começo, diziam que eu não sabia se era defensor público, assistente social, psicólogo ou pedagogo. Mas nunca deixei de ir para o combate. Quase morri três vezes. O cara que reclama não diz isso para mim. Sei meu papel na polícia. Meu papel vai além do meu fuzil. Meu irmão, o meu fuzil não pode falar mais alto do que eu. Não são as armas que vão resolver o nosso problema.
ÉPOCA – Que mudanças participar da “guerra” trouxe para sua vida?
Beto Chaves – Participei das grandes operações nos últimos sete anos. Minha mãe diz que sou o He-Man. Faço um esforço para sorrir, mas isso é meu... [silêncio] Não sei o que mudou e o que ficou igual. Não queria precisar fazer isso. Em nosso país, a desigualdade vai além dos problemas financeiros. Neste cenário, eu me considero um trabalhador, que procura fazer que a história das balas perdidas, dos meninos mortos com armas chinesas, não se repita. As pessoas acham que eu trabalho com o crime e a morte. Mas eu trabalho com a vida e sua preservação.
ÉPOCA – Se você trabalha com a vida, por que a polícia cultiva símbolos ligados à morte, como a faca na caveira?
Beto Chaves – Isso é histórico. Antes a polícia tinha essa cultura. Esses símbolos repercutem o passado. O Doutor Alan [Turnowski, chefe da Polícia Civil do RJ] já está trabalhando para o Papo de Responsa ser um trabalho oficial. E os símbolos serão outros.
ÉPOCA – Mas é um símbolo vazio ou há algum reflexo no imaginário do policial?
Beto Chaves – Há reflexo no imaginário do policial. Mas no da sociedade também. Senão, o Tropa de Elite não faria tanto sucesso. Muita gente imagina que ser policial é botar um saco na cabeça de uma pessoa de torturá-la.
ÉPOCA – E o que é ser policial?
Beto Chaves – Ser policial vai além disso. Ser policial é cultivar um heroísmo para além da arma. Tem a ver com a marmita daquele trabalhador que acorda às 6h, pega um ônibus às 7h e só para casa às 21h. É esse o heroísmo do policial. Vou continuar usando arma? Vou. Ainda é um símbolo? É. Sou habilitado para isso? Sou. Mas estamos em um momento de transição.
Fonte: ÉPOCA
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