José Rabelo
Foto capa: Nerter Samora
É difícil encontrar uma pessoa que amanheceu no Espírito Santo no dia 24 de março de 2003 e não carregue consigo ao menos uma dúvida, pequena que seja, sobre os reais fatos que motivaram a morte do juiz Alexandre de Castro Martins Filho. A cada novo aniversário do fatídico episódio, novos fatos, teses, hipóteses e até boatos reacendem a polêmica em torno do caso. Este ano não foi diferente.
Para lembrar os oito da morte de Alexandre, o pai do juiz, o advogado Alexandre Martins, organizou um seminário, na última quinta-feira (24), no Centro de Convenções de Vitória. Na lista dos convidados de Martins, estavam os principais personagens que acompanharam o Caso Alexandre, das investigações até os tribunais.
Embora os organizadores tenham se esforçado para manter o foco do seminário nas homenagens ao juiz Alexandre, às súplicas de punição aos culpados que ainda não foram a júri popular e à morosidade das instâncias superiores da Justiça em concluir o caso, todas as atenções acabaram se voltando para a grande polêmica que se formou em torno do pedido de federalização do crime. A presidente da Associação de Mães e Familiares das Vítimas da Violência (Amafavv), Maria das Graças Nacort, autora do pedido, se tornou vilã para alguns e heroína para outros.
Todos os palestrantes do seminário, sem exceção, ao vivo, no auditório - falando para cerca de mil pessoas, na sua maioria estudantes de direito – ou por meio da imprensa, vociferaram contra o pedido de federalização e o classificaram como “absurdo”. Martins puxou o coro dos descontentes ao criticar o “atrevimento” da militante. Para o advogado, o pedido vai beneficiar os mandantes do crime.
Maria das Graças, na sua simplicidade, justificou que ainda paira sobre o crime muito mistério. “Ainda há muitas perguntas que precisam ser respondidas. Há uma série de erros processuais em torno do caso”. Ela defende que a federalização do crime poderá esclarecer de uma vez por todas que se trata de latrocínio e não crime de mando. “Tem muita gente que continua a insistir que o crime é de mando para evitar que a verdade venha à tona. Se essas pessoas estão com a consciência tranqüila, elas deveriam apoiar a federalização”, sustenta.
Durante o seminário, Martins pediu a punição dos “supostos” mandantes do crime que continuam em liberdade. O advogado, apoiado à unanimidade pelos convidados e amigos que palestraram no evento, exigiu que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) seja mais célere para que os “mandantes” do crime – juiz Leopoldo Teixeira, coronel Walter Ferreira e o ex-policial civil Cláudio Luiz Andrade Baptista, o Calu - sejam levados a júri popular.
O juiz Carlos Eduardo Lemos, o ex-secretário de Segurança e deputado estadual Rodney Miranda, o procurador-geral de Justiça Fernando Zardini, o promotor Otávio Gazir, o juiz federal Américo Bedê, o diretor da Faculdade de Direito de Vitória (FDV) Antônio Abikair e a delegada Fabiana Maioral, um a um, condenaram a atitude da presidente da Amafavv.
Com a ajuda da imprensa, que estava disposta a “crucificar” Maria das Graças como a “carrasca do ano”, os palestrantes, sempre em tom de indignação, criaram um divisor de águas em torno da polêmica. Do lado do bem, da Justiça, dos homens probos, estão as pessoas que são contra a federalização; já os que teimam em questionar as circunstâncias que cercam o crime e a tese de mando, estão “a serviço” do crime organizado e “trabalhando” para inocentar culpados.
Nas últimas 48 horas, a imprensa e as autoridades contrárias ao pedido de federalização fizeram um “apedrejamento moral” à militante. O jornal A Gazeta insinuou, por duas vezes, que a presidente da Amafavv não tinha formação educacional suficiente para formular o pedido de federalização do crime. Escreveu a repórter: “(...) Embora [Maria das Graças] tenha feito somente o ensino fundamental, garante que elaborou sozinha o documento enviado ao MPF [Ministério Público Federal] e que não teve a assessoria da defesa de nenhum dos acusados da morte do juiz Alexandre”.
No dia seguinte, ainda não convencida das explicações da militante, a repórter de A Gazeta voltou a questionar a autoria do pedido ao advogado Clóvis Lisboa, ligado a Maria das Graças. Da conversa com o advogado a repórter construiu a chamada da matéria: “Documento pode ter sido obtido na internet”. A repórter chegou à dedução, mais uma vez duvidando da capacidade da militante, após questionar o advogado Lisboa: “Onde ela pode ter conseguido ajuda?”. Em resposta, o advogado sugeriu a internet.
A presidente da Amafavv também classificou como infelizes as colocações da repórter de A Gazeta. “Quando ela me entrevistou por telefone me senti ofendida quando ela insistiu em questionar a minha capacidade de preparar o documento. Eu não menti. Só estudei até a oitava série mas sou uma mulher de luta e honesta. Qual é o problema de estudar até a oitava série? O Lula também só tem o primeiro grau e foi presidente do Brasil duas vezes, e com toda essa aprovação que ele conquistou. Não é só o Lula que pode chegar tão longe com pouco estudo, uma pessoa como eu também pode. Acho que isso é preconceito. O Lula também sofreu muito preconceito neste País antes de provar que era capaz. Infelizmente, o Brasil ainda é um país injusto”, desabafou.
As manchetes que se sucederam no dia do seminário e nas edições do dia seguinte deram a “versão do bem contra o mal”. Reparem em algumas manchetes: “Federalizar é beneficiar mandantes”; “Juíza estranha pedido de revisão do Caso Alexandre Martins”; “Ação pode livrar acusados de mando”; Seminário Contra Crime Organizado critica federalização do caso Alexandre Martins.
No afã de separar o joio do trigo, alguns convidados chegaram a ser deselegantes nos ataques à militante, que passou a ser identificada como a representante do “mal”. Lemos e o promotor Gazir fizeram os comentários mais destemperados à iniciativa de Maria das Graças Nacort. “Não há motivo para o pedido de federalização. Isso é para desviar o foco”, disse Lemos. O juiz, que atuou na fase do inquérito que apurou a morte de Alexandre Martins e nas fases de instrução e pronúncia do processo judicial que indicou os primeiros acusados, disse que havia no auditório pessoas ligadas ao crime organizado. "Eu vi pessoas aqui que estão ouvindo nossas falas e que vão sair daqui e criar um factóide para defender um monte de bandidos", afirmou sob fortes aplausos da plateia.
Gazir foi mais incisivo nas críticas. “Causa estranheza os questionamentos dessa mulher. Dizer que pessoas desse naipe são inocentes... É uma ação de oportunidade que visa a descaracterizar as acusações. É só uma dúvida: mas talvez tenha interesse financeiro no meio”, suspeitou o promotor.
Maria das Graças Nacort disse que vai responsabilizar o promotor pelas insinuações de que ela teria recebido dinheiro para dar andamento ao pedido de federalização do Caso Alexandre. “Fiquei indignada quando soube do infeliz comentário do promotor. Ele vai ter que provar que eu recebi dinheiro para fazer a denúncia. Ele não tem o direito de fazer uma acusação leviana contra uma mulher que tem um trabalho reconhecido na defesa de direitos humanos neste Estado há mais de uma década. Vou processá-lo por isso”, avisou.
Para desqualificar a presidente da Amafavv, Gazir ainda disse que Maria das Graças já havia posto a Justiça em xeque no julgamento dos policiais acusados de assassinar seu filho, Pedro Nacort. O promotor deu a entender que a militante era fadada a arranjar confusões infundadas com a Justiça. Ele não explicou aos presentes, porém, que o júri popular do julgamento dos acusados de matar Pedro Nacort foi anulado, após Maria das Graças questionar a parcialidade do júri. Em outubro de 2009, a Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado (TJES) anulou a absolvição dos policiais militares acusados de matar Pedro Nacort. O desembargador José Luiz Barreto Vivas, relator do processo, votou pela anulação do julgamento. De acordo com o relator, as provas encontradas ainda apontavam dúvidas quanto à autoria do crime
O procurador-geral de Justiça Fernando Zardini, embora conheça o trabalho de Maria das Graças de perto, também não poupou críticas à militante. Zardini alertou que o pedido de federalização pode desqualificar todo o trabalho “sério feito pelos profissionais do Estado”. Ele advertiu também que qualquer tentativa de mudança no rumo desse processo pode representar um grande retrocesso e adiar ainda mais a punição dos culpados.
Antônio Abikair, foi outro que se indignou com o pedido de federalização do crime. O diretor da FDV declarou ao jornal A Gazeta que a hipótese levantada por Maria Das Graças era “absurda e vergonhosa". E acrescentou: "O que me deixa muito triste é ver que a mãe de uma vítima [Pedro Nacort] se preste a um papel dessa ordem, de pedir ao MPF uma federalização, que nada mais é que uma procrastinação".
Na análise do juiz federal Américo Bedê, o pedido de federalização além de incabível é inconstitucional. Ele adverte que a emenda constitucional que prevê a federalização é de 2004, portanto, posterior a morte do juiz.
O pai do juiz Alexandre, além de compactuar com a inconstitucionalidade do pedido, também afirmou que a militante não tem legitimidade para fazer o pedido. O advogado disse que o pedido da Amafavv é oportunista. “Todos os anos alguém aparece com uma novidade. Este ano foi o pedido de federalização. O estoque está acabando. No ano que vem eles são capazes de dizer que foi suicídio e que não têm culpados”, ironizou. No final do evento, Martins, após agradecer os palestrantes, fez uma menção especial ao juiz Carlos Eduardo Lemos. "Poderia ficar a tarde inteira falando do doutor Lemos, ícone de grandeza e coragem. Ele é o herói vivo do Estado, o outro é o herói morto".
Além de ser achincalhada pela “banda do bem”, Maria das Graças Nacort recebeu críticas também do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH), que saiu em defesa da “versão do bem”. Por meio de nota, o presidente do CEDH, Bruno Alves de Souza, esclareceu que as entidades que integram o conselho “não comungam do pedido de federalização do processo que apura o assassinato do juiz Alexandre Martins de Castro Filho”.
Mais à frente na nota, o CEDH deixa o mérito do pedido de lado, que se fundamenta constitucionalmente nas “hipóteses de grave violação de direitos humanos” para justificar o pedido de federalização, para fazer coro à “banda do bem”: “Passados 8 anos do crime, as entidades de direitos humanos, no compromisso histórico da luta contra a violência e a impunidade, na verdade pedem celeridade na tramitação do processo para que todos os envolvidos sejam responsabilizados e a justiça seja feita”.
Repercutindo a nota do CEDH, do qual Maria das Graças é conselheira, o representante do Conselho de Direitos de Aracruz, Josely Pinto dos Reis, criticou a posição do CEDH. “(...) em relação ao pedido de federalização do crime que vitimou o juiz Alexandre Martins, afirmo que, na qualidade de conselheiro estadual de direitos humanos, não fui consultado sobre o tema, apesar de o Conselho ser um órgão colegiado. Tenho grande respeito por Maria das Graças Nacort, que é uma mulher de coragem como poucas e não posso concordar que o Conselho tenha lançado uma nota de repúdio a uma ação promovida pela mesma”, protestou o conselheiro.
O ex-deputado Capitão Assumção (PSB), atualmente na diretoria de Habilitação e Veículos do Detran-ES, também saiu em defesa da militante. Em artigo publicado nesta edição, Assumção afirma que foi montado um grande espetáculo pirotécnico em torno da morte do juiz Alexandre Martins de Castro Filho, transformando um crime de latrocínio em um crime de mando. “Assistimos a primeira derrota da grande encenação armada”, diz se referindo ao pedido de federalização do crime.
“Agora, por intervenção de uma vendedora de picolé, Maria das Graças Nacort, o cenário promete mudanças. Inconformada com a covardia feita a dois sargentos da PM capixaba (Ranilson e Valêncio), colocados na trama diabólica, tornados intermediários, condenados, execrados pela opinião pública e pela imprensa corporativa, expulsos da PMES e sem terem nenhum tipo de participação no crime de latrocínio, ela promete não descansar enquanto a verdade não vir à tona”, registra Assumção.
Constitucionalidade
Diferentemente do que os que se consideram donos da sapiência jurídica andaram afirmando, o pedido de federalização do crime do juiz Alexandre é constitucional.
A Constituição Federal, em seu Art. 109, prevê que o procurador-geral da República pode federalizar um inquérito ou processo somente "nas hipóteses de grave violação de direitos humanos", e "com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte”.
Diante da demanda da Amafavv, coube ao Ministério Público Federal no Espírito Santo (MPF/ES), solicitar ao Ministério Público Estadual, informações a respeito do andamento das ações e execuções penais deflagradas em razão do da morte do juiz Alexandre Martins Filho, bem como cópias integrais dos respectivos processos.
A partir de agora, MPF/ES vai reunir e enviar todos os autos do Caso Alexandre ao procurador-geral da República, Roberto Gurgel, para que ele tenha subsídios para embasar eventual pedido de federalização do crime.
Fonte: SéculoDiário